Arquitetura Km 0

As preocupações com a degradação dos recursos naturais e o meio ambiente estão na ordem do dia. A urgência do combate às alterações climáticas plasmada na expressão “emergência climática” vem-se assumindo a passos largos como um dos principais desafios com o qual a humanidade terá de se debater nos anos vindouros. Juntamente com estas preocupações surgem novos conceitos, palavras e movimentos relacionados com o seu enfrentamento.

 

Longe está o tempo em que a própria palavra “Sustentabilidade” enfrentou alguma resistência até ser incorporada no vocabulário e utilizada largamente nos mais diversos contextos. Hoje, termos como “Economia Circular”, “Resiliência”, “Pegada Ecológica” ou “Energia Renovável” fazem já parte do léxico essencial do setor da construção. Paralelamente, emergem movimentos que são incorporados de outros meios, evidenciando a transversalidade de tais questões: um dele é o “km 0”.

 

O termo “km 0”, ou “0 km”, encontra as suas raízes no slow food, um movimento que se desenvolveu como resposta à generalização das cadeias de fast food. A ideia deste movimento gastronómico centra-se na promoção do consumo de ingredientes locais e endógenos, reduzindo assim a distância entre produtores e consumidores e, por conseguinte, os danos causados ao meio ambiente pelo impacto do uso excessivo de monoculturas e de todas as emissões de carbono associadas ao transporte destes produtos.

 

Ainda que timidamente, o conceito tem vindo a ganhar forma e protagonismo no âmbito da arquitetura, descrevendo uma abordagem bastante similar. Podemos descrever a “Arquitetura km 0” como uma forma de arquitetura que privilegia o uso de materiais que podem ser obtidos localmente, que dispensam processos de transformações industriais associados a grandes consumos de energia e poluição dos recursos e, que no fim da vida útil, podem ser facilmente reciclados ou devolvidos ao meio ambiente. Esta abordagem do projeto de arquitetura tem como principal intuito a criação de construções a um valor acessível, mais sustentáveis, saudáveis e vinculadas à identidade histórica e cultural dos territórios.

 

Arquitetura Km 0 e Arquitetura Vernacular

 

Qualquer arquiteto ou estudante da área que se preze poderá antever semelhanças entre a Arquitetura Km 0 e a chamada Arquitetura Vernacular ou Arquitetura Popular, que descreve a arquitetura desenvolvida de modo autónomo por comunidades um pouco por todo o mundo e se caracteriza pela utilização de materiais, meios e conhecimentos locais. A arquitetura vernacular surge assim como uma resposta a um contexto de escassez, anterior ao desenvolvimento da indústria e à globalização, em que as pessoas procuravam no entorno os meios para a construção de edifícios adaptados às suas necessidades. Com o tempo, o sistema de tentativa e erro, dentro de uma situação de isolamento, acabou por dar origem a uma diversidade de soluções otimizadas de acordo com as condições específicas de cada região, levando ao aparecimento de formas de arquitetura características de cada uma destas comunidades.

Quem passa em revista “O Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal” que compila uma série de trabalhos de campo levados a cabo na década de 50 por equipas de arquitetos portugueses, com o intuito de catalogar de forma objetiva a arquitetura vernacular no território português, rapidamente percebe a diversidade de soluções que podem acorrer num país tão pequeno como Portugal e a ligação destas soluções à disponibilidade de matérias-primas de cada região.

 

Cabana tradicional do povo Dorze feita com bambu trançado, Etiópia. © Nomad Architecture
Figura 1.1 - Cabana tradicional do povo Dorze feita com bambu trançado, Etiópia. © Nomad Architecture
Figura 1.2 - Grande Mesquita de Djenné, o maior edifício do mundo em adobe, Mali. © Ruud Zwart
Figura 1.2 - Figura 1.2 - Grande Mesquita de Djenné, o maior edifício do mundo em adobe, Mali. © Ruud Zwart

O desenvolvimento da indústria e das redes de transporte trouxe a estas comunidades meios tecnológicos e materiais que conduziram à decadência e, não raras vezes, à destruição da arquitetura popular, associada a um passado de privações e tida como obsoleta. A valorização deste tipo de património construído por gente anónima sem o acompanhamento de arquitetos começou em Portugal em meados do século XX relacionada com a perceção da sua importância para a identidade cultural e não tanto com a sua utilidade.

 

Muitos anos passados, percebemos, hoje, que os materiais acessíveis que tornaram possível o incremento da nossa qualidade de vida, a modernização das nossas habitações e a construção das nossas cidades acarretavam afinal um custo elevado: a destruição daquela que é a nossa derradeira casa, o planeta. E, abandoná-los não é mais uma questão de opção, mas uma necessidade.

Ainda que o conceito, as motivações e as condições não sejam as mesmas e não coincidam no contexto histórico a Arquitetura Vernacular e a Arquitetura Km 0 partilham um mesmo denominador comum: a condição de construir com os recursos locais. Assim, não é de estranhar que muitos dos exemplos de arquitetura Km 0 que têm surgido se inspirem em referências históricas e na reabilitação de práticas, materiais e técnicas tradicionais de cariz popular, coincidindo nos resultados.

Casas do povo Ma'dan feitas com junco, Iraque. © Flickr user davidstanleytravel
Figura 1.3 - Casas do povo Ma'dan feitas com junco, Iraque. © Flickr user davidstanleytravel
Oca Xingu feita a partir de taquaras e troncos de árvore, Brasil. © Carol Quintanilha
Figura 1.4 - Oca Xingu feita a partir de taquaras e troncos de árvore, Brasil. © Carol Quintanilha

Casa vernácula do século XXI

Este projeto vencedor do prémio internacional de arquiteturas contemporâneas em terra Terra Award 2016, está localizada em Ayerbe, uma pequena aldeia nos Pirenéus espanhóis. Aqui, tal como em outras regiões, a migração rural durante meados do século XX levou ao desaparecimento das técnicas tradicionais de arquitetura. Apelidada de “Casa vernácula do século XXI”, esta casa da autoria do escritório Edra – Arquitetura Km 0 inspira-se em diversos aspetos nas antigas construções de barro locais, reproduzindo à luz do contexto atual e de modo criterioso a sua orientação, morfologia e utilização de materiais. Com a valorização da arquitetura vernacular os autores do projeto procuram despertar a consciência da comunidade por um tipo de arquitetura que por estar fortemente ligado ao local se revela mais sustentável.

A técnica utilizada no projeto é a tapia calicostrada, uma técnica tradicional milenar baseada na construção de paredes principais utilizando terra não manufaturada, com acréscimos de palha (pija cebada) para um maior conforto térmico. “Uma análise do ciclo de vida mostrou uma redução de 50% nas emissões de CO2 . Materiais locais como a pedra, terra e palha representam 80% do peso da edificação e estão todos no Km 0. Também foram utilizadas cal hidráulica, telhas, madeira e lã de ovelha, obtidas em uma área de um raio de 150 km. Os revestimentos das divisórias interiores são feitos com gesso de argila local e os pisos são de madeira de pinho.”

Arquitetura Km 0 | Casa vernácula del siglo XXI | Edra arquitetura Km0 | Ayerbe, Espanha, 2014.
Figura 2.1 - Casa vernácula del siglo XXI | Edra arquitetura Km0 | Ayerbe, Espanha, 2014.
Arquitetura Km 0 | Casa vernácula del siglo XXI | Edra arquitetura Km0 | Ayerbe, Espanha, 2014.
Figura 2.2 - Casa vernácula del siglo XXI | Edra arquitetura Km0 | Ayerbe, Espanha, 2014.

Le Costil

“Le Costil” é o nome dado pelo atelier Anatomies D’Architecture ao projeto de renovação de uma casa de tijolo tradicional na aldeia normanda de Sap-En-Auge. A transformação da antiga casa, que mede 83 m2, levou dois anos e foi inaugurada no final de 2022.
Arquitetura Km 0 | Le Costil (exterior) | Anatomies D'Architecture| Sap-En-Auge, Normandia, França, 2022.
Figura 3.1 - Le Costil (exterior) | Anatomies D'Architecture| Sap-En-Auge, Normandia, França, 2022.
O projeto centra-se numa ideia fundamental: a realização de uma intervenção sem impacto ambiental e a criação de uma casa moderna ecológica. Isto foi conseguido através de duas estratégias: a decisão de utilizar materiais 100%, eliminado por completo o recurso ao betão e ao plástico; e a relação com o contexto histórico e social da região. Este último aspeto foi desenvolvido através do contacto com os habitantes da Normandia com o objetivo de recolher e aplicar no projeto a sabedoria e os valores tradicionais ligados à construção. Assim, foram privilegiadas as práticas ancestrais e as relações de proximidade entre os muitos ofícios envolvidos, tais como agricultores, lenhadores, serradores, cantoneiros, pedreiros, historiadores e voluntários.
Os materiais foram todos obtidos em locais localizados dentro de um raio de aproximadamente 100 km de Le Costil. Por exemplo, foram utilizados troncos de robinia para as fundações de madeira, a 30 km da casa; madeira bruta de douglas para toda a estrutura do edifício, também a 30 km de distância; ou cânhamo para o isolamento à base biológica, e rolhas recicladas para o isolamento à prova de deterioração, ambas a 45 km de distância.
No que diz respeito à reciclagem de materiais existentes, deve realçar-se a reutilização de alguns tijolos de terracota do edifício original. Estes foram aplicados num terraço utilizando a técnica tradicional Calade, cujo método se baseia na não utilização de argamassa nem cola para evitar a impermeabilização dos pavimentos. Esta reutilização dos materiais implicou uma árdua tarefa de reabilitação, limpeza e montagem.

A par dos princípios ecológicos da habitação, existe a procura de proximidade, não só na utilização de materiais, tradições e ofícios locais, mas também na ligação do edifício com o seu próprio ambiente, procurando soluções sustentáveis e locais. Nas palavras da própria cooperativa, o objetivo da casa não era criar uma estrutura isolada, mas “reconectar o habitat com o seu território, tendo em conta as suas particularidades e recursos: clima, geografia, história, património construído, materiais locais, técnicas de construção regional”.

Arquitetura Km 0 | Le Costil (interior) | Anatomies D'Architecture| Sap-En-Auge, Normandia, França, 2022.
Figura 3.2 - Le Costil (interior) | Anatomies D'Architecture| Sap-En-Auge, Normandia, França, 2022.

The Voxel

 

O parque natural Collserola, nos arredores de Barcelona, é o cenário do “The Voxel”, um projeto realizado por uma equipa de estudantes, profissionais e especialistas do Mestrado em Edifícios Ecológicos Avançados e Biocidades (MAEBB) do Instituto de Arquitetura Avançada da Catalunha (IAAC) e Valldaura Labs.

Este edifício, que é antes de mais um exercício teórico-prático de arquitetura, foi desenvolvido durante a quarentena imposta pelo coronavírus e surge como uma resposta a um contexto de autoconfinamento e de escassez de materiais de construção em que os utilizadores se vêm obrigados a construir um espaço adaptado às condicionante a partir das matérias-primas e dos meios tecnológicos que podem encontrar no seu entorno.

Arquitetura Km 0 | The Voxel (axonometria) | Valldaura Labs | Parque Natural de Collserola, Barcelona, Espanha, 2020. © José Hevia e Valldaura Labs
Figura 4.1 - The Voxel (axonometria) | Valldaura Labs | Parque Natural de Collserola, Barcelona, Espanha, 2020. © José Hevia e Valldaura Labs
Arquitetura Km 0 | The Voxel (axonometria) | Valldaura Labs | Parque Natural de Collserola, Barcelona, Espanha, 2020. © José Hevia e Valldaura Labs
Figura 4.2 The Voxel (axonometria) | Valldaura Labs | Parque Natural de Collserola, Barcelona, Espanha, 2020. © José Hevia e Valldaura Labs

Projetada para ser uma cabana de quarentena, a casa pode acomodar um ocupante durante 14 dias, suprindo todas as suas necessidades materiais. O Voxel, ou pixel volumétrico, é uma estrutura estrutural de madeira laminada cruzada (CLT) de 16 metros quadrados feita de pinheiro de Aleppo (Pinus halepensis) que foi moída, seca, processada e prensada no local. Toda a madeira utilizada no projeto foi colhida em um raio inferior a 1 km do estaleiro.

Arquitetura Km 0 | The Voxel (axonometria) | Valldaura Labs | Parque Natural de Collserola, Barcelona, Espanha, 2020. © José Hevia e Valldaura Labs
Figura 4.3 - The Voxel (axonometria) | Valldaura Labs | Parque Natural de Collserola, Barcelona, Espanha, 2020. © José Hevia e Valldaura Labs

A partir de um plano de gestão florestal sustentável aprovado em Collserola, um determinado volume florestal pode ser obtido a cada ano para promover o crescimento de árvores menores e da biodiversidade, visto que a biomassa florestal cresce 3% a cada ano e as árvores em crescimento absorvem mais CO2.

The Voxel, processo de construção. © Valldaura Labs
Figura 4.4 - The Voxel, processo de construção. © Valldaura Labs

Assim, para obter a matéria-prima do projeto, foram selecionados 40 pinheiros que foram cortados em tábuas e deixados a secar durante três meses. Quando atingiram o nível de humidade adequada, as tábuas foram levadas à carpintaria do campus de Valldaura Labs, que se situa a escassos metros, para serem transformadas em centenas de ripas de pinho. Cada folha foi então codificada em uma sequência específica, etiquetada e prensada em mais de 30 painéis estruturais de CLT que foram montados em um cubo de 3,6 x 3,6m.

Para a construção da cabana, os painéis foram encaixados através de um sistema em cavilhas de madeira, dispensando a utilização de qualquer elemento metálico como pregos ou parafusos. A partir daí, a estrutura foi então revestida por uma camada de isolamento de cortiça e reforçada com um inovador sistema de painéis de proteção contra intempéries, os quais foram fabricados a partir dos resíduos gerados durante o processo de produção dos painéis CLT. 

The Voxel, processo de construção. © Valldaura Labs
Figura 4.5 - The Voxel, processo de construção. © Valldaura Labs
The Voxel, processo de construção. © Valldaura Labs
Figura 4.6 - The Voxel, processo de construção. © Valldaura Labs

Sobre esta segunda capa de proteção, foram instalados painéis de acabamento em madeira queimada Shou Sugi Ban, uma técnica japonesa utilizada para impermeabilizar tábuas de madeira. 

Valorização de Materiais Km 0 no sistema de certificação LEED

 

No sistema de certificação LEED, a partir da versão v4, vários créditos da secção Materials and Resources incluem um fator de avaliação de localização (location valuation factor), que agrega valor aos produtos e materiais produzidos localmente. A intenção é incentivar a compra de produtos que apoiem a economia local. Os produtos e materiais extraídos, fabricados e adquiridos num raio de 100 milhas (160 km) do projeto são avaliados em 200% do seu custo (ou seja, o fator de avaliação é 2).

 

Para que um produto se qualifique para o fator de avaliação de localização, ele deve atender a duas condições: toda extração, fabricação e compra (incluindo distribuição) do produto e seus materiais devem ocorrer dentro desse raio e o produto (ou porção de um produto montado) deve atender a pelo menos um dos critérios sustentáveis (por exemplo, certificação FSC, conteúdo reciclado) especificados no crédito. Produtos e materiais que não atendem ao raio de localização, mas atendem a pelo menos um dos critérios de sustentabilidade, são avaliados em 100% do seu custo (ou seja, o fator de avaliação é 1).

© USGBC
Figura 5.1 - © USGBC

A distância é medida em linha reta, e não pela distância real da viagem. O ponto de compra é considerado o local da transação de compra. Para transações on-line ou outras que não ocorram pessoalmente, o ponto de compra é considerado o local de distribuição do produto.

Para este projeto na Pensilvânia, o betão não atende aos requisitos do fator de avaliação de localização: embora o concreto tenha sido misturado e comprado dentro de um raio de 160 km, os seus componentes – sílica, cascalho, cimento Portland e cal – foram extraídos ou produzido mais longe.

À medida que cresce a consciência dos impactos ambientais associados ao transporte de materiais espera-se que o critério de valorização da utilização de materiais produzidos localmente e a Arquitetura Km 0 passem a ganhar mais protagonismo nos diversos sistemas de certificação de edifícios sustentáveis.

Ainda que constantemente sujam novos termos e movimentos, eles geralmente se sobrepõem nas causas, e a ideia primordial é buscar um equilíbrio entre um mundo altamente conectado e globalizado, mas que consiga manter uma qualidade de vida às futuras gerações, com biodiversidade, identidades e culturas locais preservadas. “Agir localmente, pensar globalmente”.  

Referências Bibliográficas

 Eduardo Souza. “Materiais a 0 km e a ideia de preservar o meio ambiente e as culturas locais ” 17 Abr 2021. ArchDaily Brasil. <https://www.archdaily.com.br/br/958880/materiais-a-0-km-e-a-ideia-de-preservar-o-meio-ambiente-e-as-culturas-locais

ISSN 0719-8906

Camilla Ghisleni. “O que é arquitetura vernacular?” 15 Nov 2020. ArchDaily Brasil. <https://www.archdaily.com.br/br/951326/o-que-e-arquitetura-vernacular>
ISSN 0719-8906

“21st Century Vernacular House / Edra arquitectura km0″ 09 Aug 2016. ArchDaily.
<https://www.archdaily.com/792763/21st-century-vernacular-house-edra-arquitectura-km0>
ISSN 0719-8884

“Le Costil House Renovation / Anatomies d’Architecture” 29 Dec 2023. ArchDaily. <https://www.archdaily.com/991971/le-costil-house-renovation-anatomies-darchitecture>
ISSN 0719-8884

“The Voxel Quarantine Cabin / Valldaura Labs” [The Voxel – Una cabaña de cuarentena / Valldaura Labs] 15 Mar 2021. ArchDaily. <https://www.archdaily.com/958366/the-voxel-quarantine-cabin-valldaura-labs>
ISSN 0719-8884

Dejtiar, Fabian. “Como construir com madeira km 0?” [¿Cómo construir con madera km 0?] 12 Set 2021. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) <https://www.archdaily.com.br/br/966674/como-construir-com-madeira-km-0>
ISSN 0719-8906

 

Artigo de Samuel Pinto, técnico de pré-construção da TopBIM.

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