O Futuro do BIM: BIM 2.0?

Fazendo um ponto de situação na minha carreira, olho para trás e vejo as transformações que o setor AECO já teve e atravessou nos últimos anos. Noto também que a minha atitude tem mudado com estas transformações. E como sendo alguém, que desde muito cedo adotou uma ferramenta de trabalho BIM, pertenci a um grupo de pessoas que ignorava completamente a mudança de cultura que estávamos a fazer, ficando só a olhar para a perspetiva geral.  Ou seja, a única narrativa existente na comunidade era: “CAD é mau, BIM é o Futuro”. Embora nesta fase já não há dúvidas que o BIM trouxe melhorias significativas na indústria, mas só a meio do processo é que nos apercebemos que podíamos corrigir as ineficiências profundamente enraizadas na indústria AECO.

“É impossível haver progresso sem mudanças, e aqueles que não conseguem mudar suas mentes nada mudam.” – George Bernard Shaw

Background

Ainda como estudante de Arquitetura, nos meus 20 e poucos anos, e já a trabalhar num escritório, tive a oportunidade de me darem um projeto para ser eu a desenhar. Todo vaidoso dei o meu melhor, a experiência do Arquiteto foi fundamental para ajudar a ultrapassar alguns problemas, mas tudo ia de vento em poupa. Chegou o dia de enviar o projeto final para as especialidades, e a primeira coisa que o Engenheiro me diz: “Vou verificar se está bem ‘desenhado’!”. Mas eu estava seguro do meu trabalho, o Arquiteto e o Cliente tinham aprovado, a Câmara tinha deferido o projeto, não haveria qualquer razão para o Engenheiro não gostar do ‘desenho’.
Mas eis que ele me chama, mostra-me os no CAD, tudo numa confusão, e diz-me: “Tens um ‘desenho’ mal!”. Foi este preciso momento que tive um turbilhão na minha cabeça.

Lições aprendidas

Fiquei espantado por o Engenheiro não ter olhado para o ‘desenho’ da Arquitetura mas sim para uma sobreposição de desenhos, e lá estava efetivamente uma parede exterior que não batia certo por 1 a 2 centímetros, numa só planta. Não era um erro grave, é certo, mas a partir desse momento e da conversa que tivemos, o rigor nos desenhos passou a ser tema central no meu trabalho. Curiosamente durante essa mesma semana deram-me uma tarefa que nunca tinha feito, coordenar um projeto de Estabilidade de um gabinete exterior ao nosso, com um projeto de Arquitetura. Aqui sim sofri na pele, porque ambos não encaixavam. Bem que tentava ajustar os dois projetos, mas em qualquer lado tinha sempre pilares fora do local adequado. E é aqui que me vem à memória a conversa que tinha tido há dias, de como isto era o ‘normal’ na nossa indústria.

“Porque é que isto é normal, porque é que não há responsabilidade dos projetistas?” Pensava eu. “Porque os técnicos não asseguram a qualidade (QA) dos seus projetos? E porque nunca me ensinaram estas dinâmicas?”. Do outro lado o Engenheiro respondia-me: ‘Bem-vindo ao mundo da construção, e tens sorte de aqui sermos rigorosos e de resolvermos o máximo ainda em fase de projeto, imagina se fosse em obra!’

Evangelizando a metodologia BIM

Foi nesta fase que me lembrei dos softwares BIM que já tinha aprendido e brincado, mas que sempre achei demasiados redutores, porque não acompanhavam a complexidade formal que eu sempre gostei de dar aos meus projetos. Verdade seja dita, em Portugal, no mundo do trabalho real, com uma Arquitetura mundialmente conhecida e liderada por mentores do minimalismo, talvez ‘aqueles softwares redutores’ sejam o que eu preciso. Deixo de pensar no rigor que tenho de ter, para passar a focar-me exclusivamente na Arquitetura.
Aquilo que me causava sofrimento nos primeiros tempos no exercício da minha profissão, ficou solucionado ao adotar um software BIM. A tecnologia ajudou-me, e eu automaticamente converti-me. O que passou a ser o meu sofrimento era ver todos os envolvidos a dispensarem os seus recursos a construir casos de negócio para verificarem o retorno dos investimentos com os lapsos e problemas de projeto, a queixarem-se do custo das atualizações tecnológicas e a não olharem o retorno efetivo que uma transformação tecnológica lhes poderia dar e a continuarem consecutivamente a cometer sempre os mesmos erros. Mas eu continuava no meu canto, descansado com um modelo sólido e resolvido, em que todos tentavam apontar a Arquitetura e efetivamente o problema eram eles.

Fig. 1 – Evangelizando BIM

Se por um lado eu pensava que talvez estas pessoas nunca tido a experiências similares, por outro tinha a noção que também somos humanos, é normal cometermos erros. É por isso que temos os protocolos de Qualidade no nosso fluxo de trabalho e os seguros profissionais. Ou então o mais provável era a desconfiança deste tipo de tecnologia, que eu também a tive, e estavam a tentar perceber como estes novos softwares se iriam comportar. Que foi o que acabou por acontecer.

História e adoção BIM

O conceito de BIM e os primeiros softwares apareceram nos anos 70, mas a sua exigência a nível de hardware era grande e tornava-se difícil trabalhar. Daí o sistema CAD ter sido de longe o mais utilizado até há bastante pouco tempo. O ponto de viragem começou por volta do ano 2000, onde o hardware já começava a ter algumas performances interessantes e os softwares a ganhar algum corpo e a ser mais amigos do utilizador. Com todo um cenário favorável o BIM começou a ganhar tração e hoje já temos países onde é obrigatório a sua utilização, e muitos outros a caminho desse ponto.

Fig. 2 – Evolução do BIM

Desde o meu envolvimento com a metodologia BIM, já há 17 anos, evitei sempre que possível tudo o que tivesse relacionado com projetos em CAD. Aliás quem experimenta não quer outra coisa. BIM era o futuro! O que me levou a mergulhar cada mais fundo na metodologia. Ia aprendendo de projeto em projeto, deparei-me num certo ponto a trabalhar com personalidades relevantes do mundo AECO, e comecei a reparar em situações que até agora não me tinha deparado. Tal como um Arquiteto consegue sentir os materiais de um edificio ou olhar para detalhes que nunca ninguém olha, embora todos sentem que é um ‘edifício de arquiteto’, eu comecei a reparar cada vez mais, nas graves limitações que a metodologia tem. Estará o BIM condenado? Claro que não. Antes pelo contrário há é aqui espaço para se evoluir ainda mais. Vamos ter é a oportunidade de assistir a mais um salto tecnológico na indústria.

A visão utópica do BIM

O BIM prometeu sempre uma utopia alicerçada numa nova visão tecnológica e num novo conceito de fluxo de trabalho. Mas como sabemos, não tem estado a correr como planeado.

Substituímos o velho fluxo dos desenhos 2D por um sistema perfeitamente coordenado de modelos 3D. E até aqui tudo bem. Esta visão utópica correria bem se, por exemplo, não existissem múltiplos modelos BIM em diferentes estágios do processo. As empresas continuam na mesma a estar atulhadas de desenhos que acabam por editar no AutoCAD, quebrando assim a rotina de sincronização e coordenação BIM. Os softwares, cada vez mais, isolam os seus dados em diferentes formatos próprios, tornando-se assim difícil projetar algo grande ou detalhado, piorando se for algo grande e detalhado, porque isto vai desafiar muito mais o hardware dos computadores e consequentemente o tamanho das bases de dados.

Podemos acrescentar que o BIM 1.0 também é caracterizado por tentar alinhar os projetistas através de padronizações (standards): Ambientes comuns de dados (CDE), ISO 19650, etc. Mas ao invés de andarmos a desenvolver protocolos extensivos para a eliminação de colisões, não seria preferível eliminarmos as colisões através de um processo automático? Em vez de discutirmos o formato dos ficheiros, não poderíamos ter uma API através da qual poderíamos “streamar” os dados das mesmas?
Estamos num ponto em que é fundamental repensar o design digital do processo BIM, de forma a melhorarmos o processo.

Filosofia da metodologia BIM

No centro da metodologia BIM encontramos as filosofias de ‘colaboração’. Que nos últimos 38 anos pouco ou nada se alteraram. Esta ideologia foca-se assim em dois dos principais conceitos:

Premissa 1 – Modelo integrado

A primeira premissa da metodologia BIM é a contribuição para a criação da única fonte de verdade do projeto.
Teoricamente a ideia passa por se trabalhar numa plataforma comum, onde por exemplo, um pilar muda de sítio e em tempo real todos os projetistas têm acesso a essa alteração e podem atualizar os seus modelos. Mas na realidade isto não acontece. O que é norma é existir uma data onde todos sincronizam os modelos e nessa altura se procederia às atualizações, e assim sucessivamente. É possível sim, mas na prática só acontece quando é conveniente.

Premissa 2 – Refinamento progressivo dos modelos

Conhecido por vários pseudónimos, tais como “a roda da morte do BIM”, ou a “linha de ouro do BIM”, outro dos pilares da metodologia que continua o mesmo é a utilização de um único modelo em todas as fases do projeto – desde o conceito à gestão do edificio. Termos como, LOD (nível de detalhe), LOI (nível de informação) ou LOIN (nível de informação detalhada), entraram nos nossos dias em sincronização com as diferentes fases de projeto. Quanto mais avançado, mais detalhe e mais informação se iria ter nos modelos.

Fig. 3 – Relação entre o LOD e as fases de projeto

Este refinamento progressivo do modelo baseia-se na crença de que um problema de projeto é sempre demasiado complexo para se resolver imediatamente, mas que deve ser fragmentado e resolvido de forma incremental. Começar com a escala maior e passar à microescala. Também juntamente com este conceito temos o modelo de gestão de projetos em cascata.

Neste modelo de trabalho, os caminhos críticos e pontos de situação, uma vez acordados segundo contrato, quando porventura têm de ser alterados implicam uma revisão do mesmo, porque são modificações aos serviços. Por outras palavras quando uma decisão é tomada e aprovada, há uma dificuldade técnica acrescida e também financeira a ter em conta, sendo mais específico, na metodologia BIM só existe um único método de refinamento. E todos nós sabemos o sacrifício que é ter um modelo de fabricação já em LOD 400 de um pavimento cerâmico e ter de o alterar por exemplo para soalho pregado.

Rumo ao BIM 2.0

Muitos diriam que com o planeamento adequado do projeto, estas situações não existiriam. Mas vivemos num mundo incerto atualmente. O planeamento urbanístico e legislação alteram frequentemente. O custo da mão de obra e dos materiais sobe e desce. Alguns materiais podem não estar disponíveis no tempo necessário. O facto é que qualquer que seja a razão, BIM e o seu modelo cascata de gestão de projeto não é suficiente em circunstâncias incertas. Esta limitação torna-se particularmente problemática nos novos métodos e modelos de construção, uma vez que por vezes temos de ter a micro informação primeiro que a macro informação.

A história do “Rei vai nu”, é uma parábola que se aplica perfeitamente ao atual método BIM, onde as pessoas têm medo de criticar algo ou alguém por causa da perceção da sabedoria das massas. Criticar e desafiar o BIM é mau para o negócio, todo mundo sabe que CAD é péssimo e BIM é excelente. Por isso se alguém é contra o BIM é pro-CAD. Mas serão estas únicas duas alternativas?

Fig. 4 – Um mesmo caminho, duas filosofias tão distintas?

Abraçando a mudança

Tal como mencionado acima, no atual estado do BIM (chamemos-lhe 1.0) existe o conceito de estandardização. Esta uniformização é importante para haja um entendimento entre todos os envolvidos, de modo a evitar-se reinventar a roda em cada projeto. Aprofundando o tema, sabemos que outra das premissas do BIM é minimizar a duplicação de trabalhos, ou seja, concordar com tudo em antecedência para minimizarmos o trabalho perdido, a normalização.

De acordo com Richard e Daniel Susskinds, o poder do mercado, os avanços tecnológicos, e a engenhosidade humana, conduzem o trabalho manual, para a estandardização/normalização, consequentemente para a sistematização e finalmente externalização.

Fig. 5 – O futuro das profissões

Assim sendo, o BIM 1.0 está bem encaminhado na sua fase de normalização. Do que temos até agora, encontramos um sistema prático, rotineiro para reutilização posterior, com o fim de evitar erros e garantir a consistência no trabalho. Estaremos assim no ponto de rebuçado para avançarmos para a sistematização, onde os sistemas atuais têm de ser desenvolvidos para ajudarem os técnicos ou até os substituírem. Enquanto a normalização envolve a redução de tarefas a rotinas reutilizáveis, a sistematização envolve a codificação do conhecimento num formato legível por máquina.

Como será o BIM 2.0?

Nos últimos anos todos nós temos vindo a pensar em como conseguir uma sistematização do processo de projeto em grande escala. Poderíamos começar com a seguinte hipótese: “Como podemos incluir o método Agile e desbloquear a questão da macro e micro informação em qualquer ponto do processo de projeto?”, ou seja, sendo o BIM 1.0 centrado no método da cascata, como seria se ele fosse pensado para o método Agile?

Fig. 6 – Método da Cascata vs Método Agile

Entre bastantes pontos para debater, deixo mais alguns:

1 – Digitalização do nosso conhecimento/sabedorias.

Para se atingir a automatização em grande escala, teremos de digitalizar todo o nosso conhecimento. Desde sempre a indústria AECO baseou o seu conhecimento em catálogos, desde a legislação ao acabamento final, existe sempre um PDF com essa informação. Ao codificarmos este conhecimento num algoritmo, estamos não só a partilhar informação, mas também o conhecimento.
Por exemplo, o desenho de um parque de estacionamento implica o cumprimento de determinada legislação, dimensionamento das viaturas, etc. Mas se tivermos um software que abrange tudo isto, poderemos ter um desenho gerado automaticamente.

Fig. 7 – TestFit e as soluções de análise de edifícios em tempo real

2 – Modelação adaptativa e autoconsciente

Qualquer alteração ao projeto deve automaticamente e associativamente modificar os elementos relacionados. Por exemplo, imaginemos que um edifício tem de ser maior, o modelo automaticamente deveria aumentar o número de fogos, ou adicionar escadas com determinada distância entre elas. Porque não a rede de sprinklers ser adaptativa à alteração de área e do pé-direito do edifício?

O que se tenta passar neste ponto é mais do que um componente adaptativo do Revit, deveria existir uma hierarquia onde uma decisão no projeto teria um efeito de cascata em vários elementos, podendo eles ser movidos, criados ou apagados.

3 – Integração do planeamento urbanístico, projeto e construção

A legislação para o planeamento urbano diz-nos onde e o que podemos construir. A legislação da construção diz-nos como podemos construir. No meio destes dois espectros cai o projeto de arquitetura. Se o planeamento e a construção afetam o projeto de Arquitetura, deveríamos ter estes dois pontos ligados de uma forma adaptativa para não só a garantir a qualidade do projeto, mas ir mais além e começar a garantir a geração de projetos automaticamente.

Por exemplo se estivermos a trabalhar com o sistema construtivo da CREE, deveria ser possível pegar nos seus elementos já digitalizados (ponto 1) e poder-se obter automaticamente vários estudos onde se enquadrariam tanto com o sistema construtivo assim como a legislação do planeamento urbano. Podemos até pensar mais longe, tendo vários sistemas construtivos digitalizados, poderíamos até rapidamente criar múltiplos cenários para análise.

Fig. 8 – Autodesk Forma trazendo inovações da análise e extração de dados em tempo real de projetos urbanísticos

Repensar e ‘Desaprender’ o BIM

Por norma a inteligência é tradicionalmente vista como a habilidade de pensar e aprender. Mas num mundo turbulento como vivemos atualmente, deveremos ter outras características como o repensar e ‘desaprender’. Ouvimos muitas opiniões que nos fazem sentir bem, ao invés de ouvir ideias que nos fazem pensar bastante.

Faz mais do que sentido pensar e refletir nas vantagens enormes que o BIM nos trouxe para a indústria AECO. Como conceito, BIM é só 10 anos mais velho que o Windows 95. E sim a metodologia evolui ao longo destes anos todos, mas as suas limitações e falhas constantes são um teto de vidro para o seu progresso. Para podermos avançar temos de primeiro de desaprender o que consideramos o atual caminho para que possamos encontrar uma melhor solução.

Conclusão

Bim 2.0 será o passo definito da passagem da normalização para a sistematização. Os dados irão deixar de ser compartilhados por meio de formatos de arquivo de código aberto ou modelos COBie, em vez disso o conhecimento cada vez mais irá ser resgatado, codificado e partilhado através de um algoritmo e disponibilizado instantaneamente.  Esta mudança permitirá que a indústria passe de um sistema de gestão de projeto em cascata para um modelo centrado na agilidade, onde a mudança é abraçada em vez de existir uma resistência. O BIM 2.0 já está a caminho, não é um trabalho que vai acontecer da noite para o dia, mas as rodas já estão em movimento.

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